“Coisas assim fazem
a gente recuperar a fé na humanidade”.
Primeiro, minhas palavras causaram
espanto. Em seguida, veio um “cala a boca, Leandro”, em uníssono. Nenhuma das
duas reações me surpreendeu. Afinal, a frase tinha saído da mesma boca por onde
antes entrou uma almôndega de calabresa preparada no vapor, mastigada e
engolida – nunca falo de boca cheia, nem mesmo para fazer declarações pouco
ortodoxas. Meus amigos também tinham gostado da entrada, mas não compartilharam
meu entusiasmo. Talvez, realmente não fosse para tanto. Terminadas as
almôndegas e mesmo o excelente hambúrguer (também preparado no vapor) que veio
em seguida, de fato, a frase mostrou-se de efeito duvidoso. Minha fé na
humanidade voltou aos patamares anteriores: quase zero. Nada cozido sem gordura
tem tanto poder.
Exageros de
comicidade duvidosa à parte, a verdade é que é verdade: minha fé na humanidade
é pequena. E o mais preocupante: é a única que tenho. Mais seguro seria
acreditar em algo superior, subjetivo, infalível, idealizável, mas a crença no
ser humano é o que temos. Ou, pelo menos, o que tenho. E o que tenho se esvai a
cada dia, encaminhado para o ralo não apenas pelas atrocidades atribuídas ao
homem, mas principalmente pela irrefreável extinção da única coisa capaz de
salvá-lo delas. As violências ao próximo – termo para abarcar de genocídios ao
ato de furar a fila, passando pelo desmatamento florestal e a incapacidade de
limpar o cocô do cachorro na calçada – não são nada novo, e nada indica que, um
dia, deixarão de existir. Mas, para suportá-las, temos do nosso lado as artes,
a filosofia, a literatura, tudo, enfim, que nos faz, como raça, minimamente
dignos da existência. As forças da inteligência e da sensibilidade raramente foram
capazes de evitar confrontos armados. Mas, sem elas, mazelas desse tipo não
teriam rendido a Guernica de Picasso ou os relatos de guerra de George Orwell –
obras que nos lembram dessas desgraças e, apesar de não impedirem sua repetição,
dão a elas algum sentido, mesmo que puramente estético. É essa a função de
livros, canções, peças e filmes: tentar justificar o absurdo da existência. São
atos de resistência perante a estupidez. Representam a recusa em nos dar por
vencidos.
Mas avançam os anos
e avançam também as tropas da ignorância, fazendo pouco dos nossos esforços,
patéticos. Como nunca, somos muito bem equipados para fazer-lhes frente, e em
nenhum momento da história fomos tão impotentes diante delas. Com as novas
tecnologias, milhares (talvez milhões) de voluntários alistam-se para lutar a
tal luta vã. Mas constituem fileiras despreparadas, crianças empunhando rifles
de assalto. Se esses fedelhos sentem-se aptos à guerra, isso se deve à internet
e à noção de democratização do talento trazida por ela – a genialidade ao
alcance de todos. Antes, artistas eram pessoas incomuns, atormentadas, gênios
isolados e incompreendidos. Hoje, sou eu, é você, é qualquer um de posse de um
computador – com internet, claro, se não, quem saberá quão geniais somos? Ao
contrário do exército, onde o excesso de contingente leva à dispensa dos menos
habilitados, nas trincheiras culturais todos são aceitos. Como resultado, somos
solapados por uma avalanche de mediocridade, que nos impede, muitas vezes, de
chegar ao que de fato merece atenção. Qualquer um pode ser escritor, músico,
artista plástico ou mesmo cineasta, mas quantos fazem uso digno dessa
facilidade de acesso aos meios de produção e divulgação? Sim, a internet nos
presenteou com os Arctic Monkeys, uma das bandas mais legais dos últimos 15 anos,
conhecidos nos meios digitais antes mesmo de terem gravado o primeiro disco.
Mas, em sua generosidade questionável, a rede nos dá em quantidade bem maior
atrocidades como “50 Tons de Cinza”. Foi o sucesso digital dos primeiros
rascunhos divulgados pela a autora E. L. James o que a estimulou a escrever a
tosca trilogia – e lhe proporcionou um gordo contrato com uma editora.
A reação de muitos
a esse cenário é a prática da arqueologia cultural: refugiam-se na redescoberta
dos clássicos como alternativa segura aos lançamentos duvidosos. Protegidas
pelo saudosismo, é dessas pessoas que vêm frases como “não se fazem mais
(livros/filmes/discos) como antigamente” ou “o rock acabou nos anos
(1970/1980/1990)”. Uma postura da qual sempre fui crítico, mas que uma sequência de decepções me
levou a adotar parcialmente, abrindo mão de ir atrás de novidades literárias,
musicais ou televisivas. Pelo menos, não de forma ativa: “Se for bom mesmo, vai
chegar até mim”. Pelo bem da preservação da minha fé na humanidade, combalida e
quase extinta, chega mesmo. São os casos do Foxygen e de “Girls”, que, antes
disso, tiveram de ultrapassar o exigente crivo de amigos.
Formado por dois
moleques de pouco mais de vinte anos, eles mesmos arqueólogos culturais, nostálgicos
de um tempo em que nem eram nascidos, o Foxygen usa componentes do rock dos
anos 1960 e 1970 em “We Are The 21st Ambassadors Of Peace & Magic”, tido
por mim e por gente menos resistente como o melhor disco deste ano. Um dos seus
grandes méritos é o de ser uma obra coesa, álbum mesmo, como os que se faziam
nos tempos em que os já citados saudosistas dizem que o rock morreu. É bom por
inteiro, e digo isso por que o ouvi assim por semanas a fio. É um apanhado de
melodias e letras sensacionais, como “No Destruction”, em que eles avisam:
“There’s no need to be an asshole, you’re not in Brooklin anymore”.
“Girls” é o tipo de
seriado que só a HBO, conhecido bastião da qualidade televisiva, poderia
produzir. É a aposta do canal no brilhantismo de outra mente de vinte e poucos
anos. Lena Dunham escreve, dirige e protagoniza a série, em que desnuda sua
geração e a si própria, inclusive no sentido literal. Faz excelente uso da (em
geral escrota) ausência de pruridos comum aos seus contemporâneos e à internet
(sempre ela), praticando grande literatura
confessional filmada. De forma realista, Lena nos conta como seus pares
recém-chegados à vida adulta estão despreparados para ela – e como mesmo alguns
há mais tempo nessa condição ainda não se adaptaram, nem dão mostras de que um
dia irão. É verdadeira em Nova York, cenário da série, e também em São Paulo,
em Recife e, imagino, em Tóquio.
São coisas assim
que, de fato, me fazem recuperar a fé na humanidade. (E, sim, garçom, traz mais
uma porção de almôndegas de calabresa e uma Eisenbahn Strong Golden Ale, por
favor.)