O sol queimava a pele das suas costas como se ele não tivesse vestido a
camiseta que as cobria. A leveza do fino tecido mostrava-se, então, traiçoeira:
tendo motivado a escolha da camiseta para suportar aquele dia quente, permitia,
quase sem filtro, a passagem dos impiedosos raios. Sentia-os torrar seus ombros,
quem sabe aumentando as já numerosas sardas que os marcavam. O sol não ignorava
somente sua roupa. Passava por cima também dos seus sentimentos, para os quais
mais adequados seriam o céu encoberto, a chuva fina, o frio. Andando pela rua
Vergueiro, se dirigia ao metrô Ana Rosa. No subterrâneo, em algum tempo, estaria
protegido da inclemência solar.
Apenas um quarteirão o separava da estação, quando parou na padaria. Já
um tanto exausto, precisava daquilo que lhe justificava a falta de fôlego. Pediu
no caixa um Marlboro vermelho, de caixinha, e um isqueiro. Pagou e saiu. No
reencontro com o sol, maldisse a lei antifumo e, antes dela, as restrições
higiênicas que o impediam de degustar o tabaco nas dependências da
panificadora. Parado na calçada, tirou um cigarro da caixa. Antes de pegar o
isqueiro, divertiu-se imaginando: quente como estava, o sol poderia
tranquilamente providenciar o fogo. “Mas nada que viria do sol seria em meu
beneficio”, constatou em seguida, solapando com este o primeiro pensamento leve
que tivera desde que acordara. Os pensamentos ruins, por outro lado, puseram-se
em ação antes mesmo da consciência.
O sono intermitente, pleno de pesadelos, teve fim com o sol entrando pela
janela, esquecida aberta, trazendo a reboque os resmungos do trânsito. A luz o
forçou a abrir os olhos e, quando o fez, se deparou com o vazio, que preenchia
o outro lado da cama e sua vida. Esticou o braço, buscando a caixa de cigarros sobre
o banco plástico que fazia as vezes de criado mudo e a descobriu vazia. Foi
isso, mais do que o relógio lhe indicando o atraso, o que o fez se apressar em
ganhar a rua. Precisava ter no peito algo além da tristeza, e não conseguia
pensar em nada melhor que a fumaça dos cigarros.
O fumo, dizem os médicos, mata neurônios. O álcool, cujo consumo ele
intensificava desde algum tempo, também. Mas as células cerebrais sobreviventes
desse massacre sistemático, como numa resistência subversiva, pareciam
trabalhar em dobro para dar conta justamente das sinapses que ele se esforçava
por evitar. Parado na calçada, atrapalhando a passagem de pessoas apressadas,
fumava alheio a tudo que não fosse o cigarro e as lembranças. Envolvidas agora
pela fumaça, as cenas aleatórias da felicidade passada ganhavam ares de
flashback de cinema. Em meio a esse nevoeiro, caminhavam sem pressa por ruas
estreitas de Paris, espremiam-se no pequeno sofá para assistir a seriados por
horas a fio, faziam amor demoradamente em manhãs de domingo, tinham conversas
intermináveis ao sair do cinema. Cigarro entre os dedos, ele se dava conta de
que o esforço dos dois para prolongar aqueles momentos tinha sido bem sucedido,
e de que isso estava longe de ser algo positivo. Agora, ele sabia: eternizar o
que viveram representou sua condenação perpétua.
Foi então que outro incômodo, físico, devolveu-o ao presente. Vindo do
topo da sua cabeça, após uma pequena parada nas sobrancelhas, o suor atingiu
seus olhos, indiferente ao que pudesse estar interrompendo. Trouxe ardor e um
lembrete: além do passado, ele tinha outro verdugo. Sim, o metrô lhe daria
asilo do sol. E foi exatamente por isso que resolveu submeter-se a ele por mais
um tempo. Gostava de saber que, se quisesse, pelo menos do sol ele poderia
fugir.
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