Já era por volta do meio-dia quando abri os olhos. Mas meus ouvidos é
que pareciam ter se fechado. As
vias movimentadas, de trânsito intenso mesmo nos finais de semana, audível até
com a janela fechada no 21º andar em que moro, não emitiam nenhum som. Abri a
janela, e os poucos carros que pude ver estavam estacionados. Nenhuma viva alma
andava no meu campo visão. “É isso”, pensei. “O apocalipse que anunciaram para
dia 21 veio com oito dias de atraso.” Teria sido um armagedon diferente do
imaginado, sem cometas caindo, sem que o chão se abrisse e engolisse os carros
– afinal, ainda havia alguns ali, parados. Era um outro tipo de fim de mundo,
mais como o descrito por Cormac McCarthy em “A Estrada” (confesso, só vi a
adaptação para o cinema), em que a vida terrena é dizimada por uma súbita e
desconhecida praga, poupando inexplicavelmente apenas alguns infelizes, como o
Virgo Mortensen e eu.
Podia me ver fugindo das tribos de canibais nômades, lutando contra um
ímpeto de sobrevivência animal que me impelia a mim mesmo ao canibalismo,
quando me lembrei: “Putz, é dia 29 de dezembro.” Todo mundo, inclusive o Virgo
Mortensen, tinha ido para a praia. São Paulo tinha ficado só para mim – e para
uns outros que, por uma razão ou outra, não engrossaram o trânsito da Imigrantes
e da Anchieta. Mandei mensagens para alguns desses remanescentes, convidando-os
para almoçar, e saí para as ruas desertas, sem levar o celular. Na volta,
resposta nenhuma. Só o silêncio.
Banho tomado, voltei para o deserto asfaltado. Decidi, então, falar
algumas das primeiras palavras do dia. Liguei para o meu pai, com quem nunca há
conversa rápida. Passados dez minutos, voltei ao silêncio. No metrô, meu vagão
estava vazio. Vazias também estavam as caixas de som que anunciam as estações.
“Qual a necessidade de avisar algo para ninguém?”, talvez tenha pensado o
condutor do trem. Desci na Consolação e a Augusta. Lá, com os primeiros pingos
de chuva caindo, encostei num boteco qualquer para almoçar. Antes que o prato
chegasse, liguei para o meu irmão. Só não foram mais dez minutos de
conversa porque o bife acebolado
que pedi nos interrompeu. Como viria a saber depois, quem queria conversar
comigo era ele. (Ficamos conversando até a noite, quando ele me disse: “Não
precisa jantar, não. Eu ainda tô aqui.”)
O plano que tinha traçado era ir até a Alameda Itu comprar material para
desenhar na Casa do Artista e, depois, buscar meu carro, que tinha deixado na
Vila Madalena na noite anterior, mas a chuva borrou tudo. O boteco em que
estava não era tão ruim, mas, almoço terminado e sem expectativa de beber, não
tinha muito o que fazer por lá. Resolvi me arriscar na chuva a caminho do
Espaço Unibanco (para mim, sempre terá esse nome) e, uma vez lá, me arriscar em
qualquer filme cuja sessão começasse logo. Às 16:00, tinha “As Quatro Voltas”,
filme italiano do qual, meio desatualizado que estou, não tinha ouvido falar.
Se tivesse, talvez não me aventurasse. Coerente com o meu dia, a película não
tinha uma palavra sequer. Além de palavras, também não tinha sentido. Sim,
leitor cabeçudo, eu sei que tinha sentido. Me refiro mais à pretensão de se
fazer enigmático, não-linear... ZZZZZZ. Quase, por muito pouco, não dormi. Só
não saí no meio da sessão por três razões: 1º) a única vez que fiz isso foi
anos atrás, no mesmo Unibanco, numa sessão de “O Segredo”, na qual entrei
igualmente desavisado; 2º) queria ver se, no final, quem sabe, se revelaria
algum sentido para o filme (sim, se revelou, mas não ajudou muito); 3º) ainda
podia estar chovendo.
Saí do cinema para me molhar um pouco mais, novamente até o metrô, no
qual, agora, tinha companhia. Fui até a estação Sumaré e de lá peguei um táxi
até a Vila Madalena. No trajeto de pouco mais de cinco minutos, o motorista
contou uma história longuíssima, atropelando palavras para que ela coubesse no
tempo da viagem. Chegando ao meu carro, não me deixou sair até terminar. Feliz
por voltar ao volante e ao silêncio, fui, aí sim, para a Casa do Artista,
verdadeiro – desculpa o clichê – playground de artista. Canetas, lápis e papeis
comprados, a programação para a noite já estava providenciada.
Passei a noite de ontem absorto nos desenhos. À medida em que ia dando
forma a eles – e a mim mesmo, já que um deles era um autoretrato –, a
necessidade de contato com o mundo externo diminuía. Tudo bem se não tivesse
quase ninguém em São Paulo. Naquele momento, por mim estaria tudo bem se não
tivesse ninguém no mundo. (Opa, bate na madeira.) Voltei a me comunicar com
pessoas que não saíram das minhas canetas apenas mais tarde, quando entrei no Facebook
para criar uma nova página de divulgação dos meus desenhos. (Para conhecer, é só clicar aqui.)
É, amigo. Assim, encerro minhas contribuições para este blog por 2012. Espero
que, em 2013, o silêncio não seja tão freqüente por aqui.