Para muitos, o atraso
daquele voo da ponte aérea não foi suficiente. Mochila no bagageiro, cinto de
segurança já afivelado, eu desligava o celular e o iPod – para mim, continuam a
ser aparelhos distintos –, enquanto observava, impaciente, a entrada dos
retardatários. Recriminava-os em silêncio, como deles fosse a culpa pela hora
acrescida à previsão de chegada ao Rio de Janeiro. O ódio dirigido aos
empata-foda intensificava-se ao lembrar-me que, enquanto a maioria já estaria entregue aos chopes de fim de
noite ou, quem sabe, à foda propriamente dita, a minha e a de outros infelizes
continuaria empatada. A Antiga Capital seria apenas uma escala no meu caminho à
Nova, um incômodo resultante da minha ânsia por economizar. Invejando seus
hipotéticos chopes sem colarinho, fiz a nota mental para a próxima compra de
passagens para Brasília: vinte ou trinta reais não valem o tempo de perdido.
Os atrasados já
haviam nos alcançado – afinal, não é tão difícil alcançar alguém sentado –, e a
sofrível pronúncia inglesa comum aos pilotos se fazia ouvir pelos auto-falantes
do avião onde não havia quem não falasse português. Havia ainda, porém, o
último retardatário, de uma falta de pressa incompatível com sua impontualidade.
Grandalhão, ele curvava-se em sorrisos para a aeromoça, ainda mais sorridente,
a lhe indicar seu lugar. Não o reconheci de imediato, mas os dentes expostos da
funcionária e o protocolo quebrado para permitir sua chegada davam a entender:
o cabra era famoso. Intrigado, procurava nos dele traços familiares, torcendo
para não encontrar nenhum. Na hora, me veio à cabeça algo que vi num filme ou
num livro, um personagem que se recusava a pegar o mesmo voo que alguém famoso
– eram, segundo ele, esses os voos que caíam. O sorriso provocado pela
lembrança se desfez com o reconhecimento: debaixo da touca que lhe encobria as
sobrancelhas, estava o rosto de Thiago Lacerda. Relegado a papéis secundários,
o galã pode já ter conhecido melhores dias, mas ainda arrancava suspiros
balzaquianos de comissárias de bordo e, pelo menos ali, para elas, seria o
protagonista. Tanto pior para mim. Já podia ler os jornais – que, morto, não
leria – falando da morte de Thiago, tão precoce e trágica, nos quais a menção à
minha morte – tão precoce e trágica quanto – não ultrapassaria o número total
de vítimas, no qual eu estaria incluído. Sorri mais uma vez, tentando disfarçar
para mim mesmo um nervosismo imbecil, fundamentado simplesmente na coincidência e na ficção.
Durante o voo,
John Fante veio em meio socorro. “O vinho da juventude” tomou todas as minhas
atenções. A Denver do livro só lembraria Thiago Lacerda se eu tivesse
estabelecido relação entre a colônia italiana da cidade e o imigrante
interpretado pelo global em “Terra Nostra” – o que, por sorte, não aconteceu. Foram
trinta páginas e quase quarenta minutos sem sobressaltos. Até que eles vieram,
físicos, assustadores. Solavancos violentos como não me lembro de ter
enfrentado antes em anos de vida aérea relativamente ativa. Como aqueles
carimbos de cartório, o medo estampado nos rostos ao meu redor reconhecia e
dava fé ao referido – não, eu não estava exagerando. Poltronas a
frente, pude ver Thiago Lacerda agarrado aos braços da sua, tomado
pelo mesmo sentimento. Talvez fosse pior no caso dele. Talvez, tendo visto o
mesmo filme (ou seria livro?), estivesse se sentindo culpado por causar a morte
de tantos inocentes que nunca tiveram suas fotos na capa da Capricho ou seus
nomes nos créditos da novela da oito. Talvez Thiago Lacerda usasse seus últimos
minutos para um discurso, um pedido de desculpas a todos os presentes por não
ter perdido o voo, por ter usado sua celebridade para não perder a passagem e,
consequentemente, nos condenar. Mas não. Ele permanecia quieto, absorto em
preces como todos os religiosos e recém-convertidos ali presentes.
Décadas se
passaram até a aterrisagem, de morte, mas não mortal. Chegando ao chão, estávamos
todos vivos. Alguns pálidos, outros borrados, muitos enjoados, mas vivos.
Thiago Lacerda, inclusive. Fez uso, mais uma vez, de sua fama – e,
principalmente, de sua estatura – para abrir caminho e ser dos primeiros a
sair. De longe, vi o ator desaparecer na turba. Torci para jamais encontrá-lo
num voo novamente. Já a periguete
sentada ao meu lado tinha outra vontade. “Ai, cadê ele? Queria tanto tirar
uma foto…”
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