segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Perigo: famosos a bordo


Para muitos, o atraso daquele voo da ponte aérea não foi suficiente. Mochila no bagageiro, cinto de segurança já afivelado, eu desligava o celular e o iPod – para mim, continuam a ser aparelhos distintos –, enquanto observava, impaciente, a entrada dos retardatários. Recriminava-os em silêncio, como deles fosse a culpa pela hora acrescida à previsão de chegada ao Rio de Janeiro. O ódio dirigido aos empata-foda intensificava-se ao lembrar-me que,  enquanto a maioria já estaria entregue aos chopes de fim de noite ou, quem sabe, à foda propriamente dita, a minha e a de outros infelizes continuaria empatada. A Antiga Capital seria apenas uma escala no meu caminho à Nova, um incômodo resultante da minha ânsia por economizar. Invejando seus hipotéticos chopes sem colarinho, fiz a nota mental para a próxima compra de passagens para Brasília: vinte ou trinta reais não valem o tempo de perdido.
Os atrasados já haviam nos alcançado – afinal, não é tão difícil alcançar alguém sentado –, e a sofrível pronúncia inglesa comum aos pilotos se fazia ouvir pelos auto-falantes do avião onde não havia quem não falasse português. Havia ainda, porém, o último retardatário, de uma falta de pressa incompatível com sua impontualidade. Grandalhão, ele curvava-se em sorrisos para a aeromoça, ainda mais sorridente, a lhe indicar seu lugar. Não o reconheci de imediato, mas os dentes expostos da funcionária e o protocolo quebrado para permitir sua chegada davam a entender: o cabra era famoso. Intrigado, procurava nos dele traços familiares, torcendo para não encontrar nenhum. Na hora, me veio à cabeça algo que vi num filme ou num livro, um personagem que se recusava a pegar o mesmo voo que alguém famoso – eram, segundo ele, esses os voos que caíam. O sorriso provocado pela lembrança se desfez com o reconhecimento: debaixo da touca que lhe encobria as sobrancelhas, estava o rosto de Thiago Lacerda. Relegado a papéis secundários, o galã pode já ter conhecido melhores dias, mas ainda arrancava suspiros balzaquianos de comissárias de bordo e, pelo menos ali, para elas, seria o protagonista. Tanto pior para mim. Já podia ler os jornais – que, morto, não leria – falando da morte de Thiago, tão precoce e trágica, nos quais a menção à minha morte – tão precoce e trágica quanto – não ultrapassaria o número total de vítimas, no qual eu estaria incluído. Sorri mais uma vez, tentando disfarçar para mim mesmo um nervosismo imbecil, fundamentado simplesmente na  coincidência e na ficção.
Durante o voo, John Fante veio em meio socorro. “O vinho da juventude” tomou todas as minhas atenções. A Denver do livro só lembraria Thiago Lacerda se eu tivesse estabelecido relação entre a colônia italiana da cidade e o imigrante interpretado pelo global em “Terra Nostra” – o que, por sorte, não aconteceu. Foram trinta páginas e quase quarenta minutos sem sobressaltos. Até que eles vieram, físicos, assustadores. Solavancos violentos como não me lembro de ter enfrentado antes em anos de vida aérea relativamente ativa. Como aqueles carimbos de cartório, o medo estampado nos rostos ao meu redor reconhecia e dava fé ao referido – não, eu não estava exagerando. Poltronas a frente, pude ver Thiago Lacerda agarrado aos braços da sua, tomado pelo mesmo sentimento. Talvez fosse pior no caso dele. Talvez, tendo visto o mesmo filme (ou seria livro?), estivesse se sentindo culpado por causar a morte de tantos inocentes que nunca tiveram suas fotos na capa da Capricho ou seus nomes nos créditos da novela da oito. Talvez Thiago Lacerda usasse seus últimos minutos para um discurso, um pedido de desculpas a todos os presentes por não ter perdido o voo, por ter usado sua celebridade para não perder a passagem e, consequentemente, nos condenar. Mas não. Ele permanecia quieto, absorto em preces como todos os religiosos e recém-convertidos ali presentes.
Décadas se passaram até a aterrisagem, de morte, mas não mortal. Chegando ao chão, estávamos todos vivos. Alguns pálidos, outros borrados, muitos enjoados, mas vivos. Thiago Lacerda, inclusive. Fez uso, mais uma vez, de sua fama – e, principalmente, de sua estatura – para abrir caminho e ser dos primeiros a sair. De longe, vi o ator desaparecer na turba. Torci para jamais encontrá-lo num voo novamente. Já a periguete sentada ao meu lado tinha outra vontade. “Ai, cadê ele? Queria tanto tirar uma foto…”

Nenhum comentário: