Morrissey e banda se apresentam no que
parece ser um salão de festas. A plateia que cerca os músicos é composta por
uma garotada de vinte e poucos anos. Olhar blasé generalizado, rapazes e moças
com cortes de cabelo modernos, elegantemente trajados com terninhos e vestidos
vintage, não fariam feio em nenhuma banda do chamado indie rock,
gênero em alta naquele ano de 2004.
O clipe de “Irish Blood, English Heart”
não deve ter sido pensado com essa intenção, mas é o retrato simbólico de um
encontro que de fato ocorreu, entre Morrissey e os indie kids.
Era como se Moz dissesse: “Vocês gostam de indie rock? Deixa eu
mostrar para vocês o que é indie rock.” Talvez fosse esse o recado
a ser dado com You Are The Quarry, disco lançado aquele ano. Poucos
astros do rock foram tão indie quanto ele.
Indie vem de independente. Ser
independente é praticar o "não". Não se render, não se domesticar,
não concordar, não se acomodar. O rock nasceu independente. Não por ter um
discurso originalmente contestador, mas por ter surgido dos excluídos e por
representá-los. Mas, como faz com todas as manifestações culturais, o sistema
assimilou o rock, o transformou em mais um produto. Entre as bandas do gênero,
porém, algumas continuaram fiéis à essência, ao "não". Não assinaram
com grandes gravadoras, não tocavam no rádio, não se apresentavam em estádios
lotados. A independência custou o dinheiro que deixaram de ganhar, mas, com
ela, mantiveram a liberdade criativa. Da ousadia do rock independente, vieram
as coisas mais interessantes que se encontravam nas prateleiras das antigas
lojas de discos – isso, quando as pequenas tiragens deixavam.
Surgida nos 1980, a palavra indie passou
a definir toda a produção cultural alternativa, inclusive as bandas saídas de
garagens para tocar em lugares não muito maiores. Bandas como os Smiths. Na sua
trajetória de apenas cinco anos, o grupo de Manchester mais do que fez jus ao
rótulo, levando ao extremo sua independência. Além de nunca terem feito
concessões artísticas, sustentavam uma postura crítica com relação à indústria
fonográfica, expressa não apenas em entrevistas, mas também em música. Quantas
bandas, dependendo das rádios para vender discos e ingressos, ousariam lançar
um single pedindo o enforcamento do DJ?
Após o fim dos Smiths, Morrissey seguiu
ainda mais indie. Com os anos, o calibre de sua metralhadora verbal
aumentou. Metralhadora que era, não poupava ninguém, mas mantinha seus alvos
favoritos: políticos, a monarquia e, claro, a indústria musical. Moz estava
longe de ser o artista dos sonhos de qualquer gravadora. Após o lançamento
de Maladjusted – ofuscado pelo britpop que
reinava em 1997 –, sem contrato, o cantor se afastou das manchetes e da
Inglaterra. Quis a ironia que se refugiasse dos holofotes justamente na cidade
com a maior concentração deles. Morando em Los Angeles, apresentando-se em
lugares cada vez menores, Moz avançou em seu processo de radicalização do indie.
Demais para as gravadoras. Continuavam a lhe virar a cara.
Em “Reader Meet Author” (1995), o
compositor previa que o ano 2000 não mudaria ninguém, mas não foi bem o que se
aconteceu. Com a virada do século, veio um dos tantos renascimentos do rock,
representado por bandas como Strokes, White Stripes e Libertines. O som que
praticavam tinha em comum a simplicidade, o resgate do clássico
guitarra/baixo/bateria no lugar dos excessos de produção de anos anteriores.
Não faltavam em suas músicas ecos de décadas passadas. Em umas, dava para ouvir
algo do The Clash, em outras, dos Stooges. Havia até algumas, veja você, que
lembravam os Smiths. Por essa época, a denominação indie recebeu
um novo significado. Passou a ser sinônimo de um estilo, de uma estética, muito
mais do que de independência propriamente dita.
A hora perfeita para Morrissey voltar,
para lembrar por que indie tem esse nome. E esse retorno não
poderia acontecer de outra forma: You Are The Quarry foi
lançado pelo Attack — até então extinto selo da independente Sanctuary,
ressuscitado por exigência dele.
Na capa, Moz posa de gangster,
empunhando uma metralhadora antiga — sua antiga metralhadora, talvez, aquela
que nunca poupou ninguém. Mas os petardos, mesmo, estão no disco: 12 tiros,
praticamente todos no alvo. Em seu primeiro álbum no novo século, Moz não segue
na direção para onde aponta o indie rock — afinal indie de
verdade não segue. Nos lugar das referências ao passado, alguns efeitos
eletrônicos (um tanto desnecessários, às vezes) acompanham as guitarras de
Alain Whyte e Boz Boorer, também co-compositores. A sonoridade redonda ajuda os
refrões a ser ainda mais memoráveis e explica porque o álbum tornou-se o mais
vendido da carreira do artista.
Em grande forma, o letrista encontrou
novos versos para os temas de sempre, entoados pelo cantor com maestria.
Começa com "América Is Not The World”, um ataque aos Estados Unidos de
fazer inveja a muitos grupos terroristas. Passados doze anos, porém, a
canção ficou datada: felizmente, nesse período, ao contrário do que dizia a
letra, o país elegeu um presidente negro – se bem que não foi nessas últimas
eleições que uma mulher foi escolhida para o cargo. Em seguida, mais um ataque,
desta vez à coroa britânica, embrulhado num atestado apaixonado de
dupla-nacionalidade, a já mencionada "Irish Blood, English Heart",
maior sucesso do álbum. "I Have Forgiven Jesus" não chega a ser
ataque, mas sem dúvida é um confronto, um acerto de contas com a herança
católica do tal sangue irlandês. Então vem aquele que, para mim, é o tiro que
errou o alvo. Arrastada, excessivamente chorosa, se Quarry fosse
um show, "Come Back To Camdem" seria o momento de ir ao banheiro ou
ao bar. Na faixa seguinte, apesar do título, é como se Moz se desculpasse: a
linda "I'm Not Sorry" é uma balada desiludida digna de quem assina a
maior de todas ("There Is A Light That Never Goes Out",
evidentemente). Em seguida, outra balada. Em "The World Is Full Of
Crashing Bores" o catedrático fala de inadequação e atesta: o mundo está
lotado de chatos. Além de inadequado, Moz faz questão de lembrar que é incompreendido
e pergunta: "How Can Anybody Possibly Now How I Feel?". "Todos
veem dor e se afastam" — a não ser, claro, os fãs. Após tanta tensão,
"The First Of The Gang To Die" soa como um alívio. Influenciada pelos
ares latinos de LA, conta a história do pobre Hector, um carismático bandidinho
que, como diz o título, foi o primeiro entre os seus a se dar mal. Hora de mais
uma balada. A deliciosamente patética "Let Me Kiss You" pede:
"feche os olhos e pense em alguém que você deseje fisicamente". É Moz
jogando para a torcida — que é, aliás, o que ele faz com a camisa ao fim da
música, quando a canta em shows. Em "All The Lazy Dykes”, o alvo são
lésbicas ressentidas. É nesta faixa, outra abaixo da média do álbum, que o
excesso de efeitos eletrônicos enche o saco. Mas, mais uma vez, Morrissey se
recupera. Apesar de novamente a produção pesar um pouco a mão nos efeitos, isso
não chega a estragar a bela “I Like You”, canção de amor a um tempo
envergonhada e subversiva. “You Know I Couldn’t Last” fecha o disco em grande e
melancólico estilo, falando da indústria musical e da efemeridade do sucesso.
A turnê de um álbum como este não
poderia ser menos que memorável. O DVD “Who Put The ‘M’ On Manchester?”,
registro do show de aniversário de 45 anos do cantor na cidade natal, é a
prova. Naquele ano, ele esteve perto de se apresentar no Brasil, mas só perto.
Tocou apenas na Argentina. Sem verba para a viagem, tive que me contentar em
ver o show do Libertines no TIM Festival enquanto acontecia o dele em Buenos
Aires. Um prêmio de consolação que me consolou bem pouco. O tal DVD me mostrou
que os shows não se comparam.
Nesses doze anos, já assisti a vários
shows do Morrissey. Alguns, inclusive, fora do Brasil — meu salário,
felizmente, aumentou um pouco —, um melhor que o outro. Por outro lado, este
ano, revi os Libertines no PopLoad Festival. Quer dizer, vi apenas as primeiras
músicas do show, que havia começado chato e não prometia melhorar. Como no
começo do século, os indies dos anos 2000 ainda têm muito o
que aprender com aquele que deu origem à série.
(Texto publicado originalmente dia 08/11/16 no site Bem Rock.)