Os óculos escuros
escondiam parcialmente o cenho franzido. A reprovação dirigia-se àqueles cujo
barulho, naquele momento, o impedia de existir. Não havia exagero na afirmação:
confinado num avião a centenas de quilômetros de velocidade e do chão, Pedro só
via justificativa para si nas próximas duas horas se pudesse ler ou dormir. Ao
entrar no avião, embora tivesse se deparado com diversas crianças pequenas e a
promessa de perturbação trazida por cada lindo sorriso banguela, tentou fechar
os olhos, apenas para descobrir que a ameaça se cumpriria.
Como se suas cordas
vocais tivessem sido acionadas pelo mesmo mecanismo responsável pelo cerramento
das pálpebras dele, todos os bebês presentes começaram a abrir o berreiro.
"Por que não dormem e me deixam fazer o mesmo?", pensava, com a
inocência de quem finge não saber do imponderável da condição infantil.
Conformado com o fato de que o sono era um luxo ao qual não teria direito
durante a viagem, abriu o livro que levava consigo. Desta vez, a criança responsável
pela mudança de planos estava bem quietinha, entretida pelo tablet e pelo vídeo
da Galinha Pintadinha, esse sim de músicas extremamente ruidosas. Os pais,
observava a distância, sorriam satisfeitos com o sorriso conquistado às custas
do alheio. "Murakami e a Galinha Pintadinha são habitantes de realidades
paralelas, de coexistência impossível", concluiu conformado, antes de
fechar o livro.
Ao seu lado, o ressonar
da namorada fazia pouco da algazarra geral. Além de causar-lhe inveja, fez
Pedro pensar se não teria sido o caso dela ter se dopado ou, ainda, se
Valentina não teria, de alguma forma, entrado em estado de animação suspensa.
Nesse segundo e improvável caso, ela despertaria somente no destino, sem ter
envelhecido um segundo sequer. "O melhor jeito de viajar, já diria a
Sigourney Weaver em Alien". Pedro olhou o relógio e calculou: faltava
ainda uma hora para chegar em Recife. Ligou o smartphone, abriu o precário
editor de texto e resolveu passar o tempo restante escrevendo.