Nunca bebia ou fumava só, só na companhia dela. E só bebia e fumava
porque ela exigia. Todas as noites, em horários em que a maioria das pessoas
estaria dormindo. Ela não se importava, o sono não lhe fazia falta. Ao
contrário: quanto menos sono, maior a sua disposição. Sabendo que ele, sim,
precisava dormir, ela só lhe concedia as poucas horas de inconsciência mediante
às garrafas esvaziadas e aos cinzeiros lotados. Nicotina e álcool eram os
únicos argumentos aceitos nas negociações de trégua que, diariamente, ele
travava com a Dor.
Quando a Dor era nova, havia tanto tempo que ele nem se lembrava de
quanto tempo era, veio com desespero e urgência, e o desafiou a dar-lhe um fim
imediato. Mas foi só ele pôr a cabeça fora da janela do apartamento e ver-se
estatelado na rua para recuar. Nas noites que passou em claro, tentou maconha, tentou
calmantes, tentou antidepressivos. Nenhuma tentativa passou disso. A Dor não se
acalmava com drogas. As ilegais tinham efeito inverso, serviam como
anabolizantes; as vendidas com prescrição médica eram simplesmente ignoradas.
Cada notificação de despejo era recebida pela Dor como um convite para
sentir-se em casa, e ela foi se alojando. De tão à vontade, não viu problema em
abrir a geladeira e uma cerveja, tirada dela. Para acompanhar, acendeu um
cigarro, fumado na sala mesmo, sem cerimônia. Bebeu, fumou, bebeu, fumou,
bebeu, fumou. Até que, cansada de beber e fumar, a Dor enfim dormiu. Só aí ele
também pôde. No sono, a Dor mostrou que, mesmo então, permanecia acordada. O
breve intervalo até o despertador tocar foi tumultuado, povoado de pesadelos.
Uma prévia de como seria dividir a cama com ela.
Após fazê-lo perder alguns dias de trabalho, a Dor concordou em deixá-lo
ir ao escritório. Sempre o acompanhava, mas sabia se comportar. Como uma filha
que vai ao emprego do pai e fica desenhando quietinha, durante o expediente, ele
quase não notava sua presença. Sabia, porém, que à noite ela não falharia.
Abandonaria a inocência infantil e dividiria com ele todas as cervejas e
cigarros, na happy hour que não podia ser chamada assim.
Não tardou à Dor parecer sempre ter estado com ele. Já tinha esquecido
de onde ela surgira, quem os apresentara, de como era a vida sem ela. Conhecia
tão bem os gostos dela, que
passaram a também ser os seus. Entre as afinidades, além da predileção por
Serra Malte e Marlboro, a aversão a sair de casa e a receber visitas. Os dois
se bastavam. Nesse casamento, e ele e a dor estavam destinados a serem infelizes
para sempre.
Ou até aquela capa da revista semanal. Na banca, a chamada gritava sobre
um revolucionário tratamento contra a dor, que acabara de chegar ao país. Os
detalhes da reportagem tratavam da controvérsia acerca da cirurgia, mas também
falavam dos seus altos índices de sucesso, reforçados por gráficos e
estatísticas. Não sem se sentir um traidor, ele ignorou os apelos da Dor e foi
ao hospital, candidatar-se ao tratamento.
Após passar por uma triagem e esperar por horas, foi atendido por um
médico.
“Então, a dor que
você sente é no coração.”
“Isso.”
“E você já procurou
um cardiologista?”
“Sim, mas ele só me
disse pra parar de fumar e beber... bom, só que eu fumo e bebo por causa da Dor.”
“Então, não é uma
dor de natureza cardíaca...”, tomou notas num bloquinho. “Me diga uma coisa:
você já se apaixonou?”
“Como?”, respondeu,
pego de surpresa. Que espécie de pergunta era aquela?
“Por favor,
responda. É importante para o tratamento.”
“Não, nunca me
apaixonei. Eu acho...”
“Nunca mesmo?”
“Bom, teve uma vez...”
Colocou a mão no peito e, os olhos apertados numa expressão de agonia,
baixou a cabeça. À menção do que a havia originado, a Dor se manifestou, tão
forte quanto no começo. Depois de tomar mais algumas notas, o médico
prosseguiu, calmamente.
“Deixa eu explicar
como funciona o nosso tratamento. Vou te encaminhar para alguns exames, que vão
apontar exatamente a localização e o tamanho da sua dor. Com o resultado, eu
vou ter a dimensão da dor e a gente vai marcar a cirurgia. Na cirurgia, eu e
minha equipe abrimos o seu peito e extraímos a dor...”
“Como se fosse um
tumor?”, completou, lembrando a analogia lida na revista.
“Sim, como se fosse
um tumor. Inclusive, tem uma outra semelhança entre a dor e o câncer... Se a
dor tiver se espalhado muito...”
Ele arregalou os
olhos e apertou o peito, com ainda mais força.
“Se tiver se
espalhado muito, o quê?”
“Bom, se a dor
tiver se espalhado muito, pode ter comprometido o coração e, nesse caso, o
melhor é retirá-lo também.”
“Quê? Retirar meu
coração? É brincadeira, né, doutor?”, riu, entre irônico e nervoso.
“Se não retirarmos
seu coração, a dor vai se espalhar pelo seu corpo inteiro. Sua vida vai ficar
insuportável. Você nem vai conseguir sair da cama. Aliás, dificilmente você vai
viver muito...”
“Mas, se você tirar meu coração, eu morro na hora!”
“Mas, se você tirar meu coração, eu morro na hora!”
“Não, não morre. O coração
é superestimado. Muitas pessoas vivem sem, sabia?”
“Ha, ha, ha, ha! Claro, claro... Meu chefe, por exemplo, não tem
coração!”
O médico não acompanhou as gargalhadas do paciente. Falava sério.
Feita a cirurgia, retirado o coração – de fato, os exames constataram
que o órgão tinha sido completamente tomado pela dor –, a recuperação demorou
meses, mas foi plena. Como prometido, a Dor, realmente, o deixou. Levou com ela
a bebida e os cigarros – não faziam mais parte das suas noites, novamente bem
dormidas. Mas ele sentia falta daquilo. Das Serra Malte, dos Marlboro e mesmo
da companhia da Dor. Ou pelo menos sentiria, se ainda sentisse alguma coisa.