“Anda, Playboy! O
bar tá cheio! Tá cagando ou tá parindo?”, gritou o chefe.
“Já tô terminando”,
respondeu o Marcelo. “Baiano filho duma puta”, acrescentou, baixo.
O chapeiro Marcelo
tinha traços refinados, pele e cabelos claros. Somados ao vocabulário
estranhamente rebuscado para alguém na sua função, lhe renderam o apelido
bradado com gosto por Ivanilson: Playboy. Dono do boteco infecto na região da
Augusta, o sergipano usava a alcunha com a entonação mais ofensiva possível, um
instrumento de legitimação de sua superioridade perante o funcionário, como o
domador mostrando ao leão que, apesar da vantagem física do animal, é ele quem
está no comando. Marcelo imaginava que aquilo, a inversão dos papéis
tradicionais, representava para Ivanilson sua maior conquista de retirante,
mais até que o próprio bar ou o Ômega 2004 tunado. Chegou à conclusão
naturalmente, já que para ele mesmo, Marcelo, ter de se subordinar a um sujeito
que, se muito, seria faxineiro no seu antigo prédio era o fim.
O fim: olhou ao redor
de si, o banheiro imundo e mofado, e se perguntou se não era exatamente daquilo
que se tratava. Estava lá ele, serviço já feito, prolongando ao máximo o
contato gélido e desconfortável de suas nádegas com a louça sanitária
desprovida de assento. O improvável prazer extraído da situação evidenciava seu
desespero. Era aquilo ou, de volta à chapa de lanches, as queimaduras com a
gordura e o excesso de pedidos, acompanhados da gritaria dos clientes e dos
constantes e irritantes “Playboy, Playboy” do maldito baiano. Ali, lugar onde
normalmente se prende o fôlego, Marcelo recuperava o seu. Naquele exato
momento, olhava para o rodo e para o balde encostados no canto, à espera dele
mesmo para usá-los na limpeza do fim da noite, e tentava ver em si as qualidades
de um personagem de Hermann Hesse.
Se a vocação para a servidão levou o humilde José Servo à condição de manda-chuva em “O Jogo das Contas de Vidro”, quem sabe ele teria sorte semelhante se também baixasse a cabeça e ignorasse as provocações, do chefe e da vida. Na fantasia do escritor alemão, o jogo exercia um papel semelhante ao da religião e os jogadores, ao do clero. Os cotovelos apoiados nos joelhos, o olhar no tabuleiro de azulejos rachados como que a pensar na próxima jogada diante do xeque-mate iminente, a cabeça de Marcelo foi até a obra de outro escritor europeu relacionada ao jogo. Pelo que se lembrava da leitura feita há anos, ainda estudante de filosofia, em “Homo Ludens” Huizinga teorizava: a vida em sociedade se organiza com base num sistema de regras, como um jogo, e, portanto, o homem é, antes de mais nada, um animal “lúdico” – a lembrança dessa última palavra, tão comum no seu vocabulário pedante daquele tempo, desenhou nele um sorriso amargo.
Se a vocação para a servidão levou o humilde José Servo à condição de manda-chuva em “O Jogo das Contas de Vidro”, quem sabe ele teria sorte semelhante se também baixasse a cabeça e ignorasse as provocações, do chefe e da vida. Na fantasia do escritor alemão, o jogo exercia um papel semelhante ao da religião e os jogadores, ao do clero. Os cotovelos apoiados nos joelhos, o olhar no tabuleiro de azulejos rachados como que a pensar na próxima jogada diante do xeque-mate iminente, a cabeça de Marcelo foi até a obra de outro escritor europeu relacionada ao jogo. Pelo que se lembrava da leitura feita há anos, ainda estudante de filosofia, em “Homo Ludens” Huizinga teorizava: a vida em sociedade se organiza com base num sistema de regras, como um jogo, e, portanto, o homem é, antes de mais nada, um animal “lúdico” – a lembrança dessa última palavra, tão comum no seu vocabulário pedante daquele tempo, desenhou nele um sorriso amargo.
Pelos vidros
quebrados da janela do banheiro, além do vento frio, entrava o barulho do
trânsito e, com ele, mais memórias. Ao longe, um motor soou exatamente igual a
outro, de ainda mais longe: o do carrinho do Enduro. O vídeo-game remontava a um tempo muito anterior a tudo, um tempo em que o pequeno Marcelo
formulava teorias ligeiramente parecidas com as de Huizinga – nome do qual ele, criança, acharia graça se tivesse ouvido falar.
Enquanto passava sem grandes dificuldades pelas fases do joguinho, o menino via
nele um paralelo com o que seria a sua vida. Tiraria tudo de letra e, por fim, conquistaria
a riqueza e prosperidade a que se julgava inevitavelmente destinado. O sorriso
trazido por essa lembrança foi ainda mais amargo.
Se a vida fosse
mesmo um Enduro, Marcelo estava na fase da pista coberta de gelo e nela
derrapava há anos, sem conseguir sair do lugar. E como havia chegado até ali?
Onde sua vida tinha dado errado? Como tinha perdido o contato com seus pais,
com seus amigos, com seu mundo? De olhos fechados, desejou intensamente que a
vida fosse de fato um Enduro. Aí, tudo se resolveria puxando o
interruptor do reset no lindo console negro do Atari.
“Playboy, se tu não
sair daí já, vai sair direto pro olho da rua!”, gritou Ivanilson socando a porta.
Marcelo ergueu-se
da privada e puxou a cordinha da descarga. Era seu reset.