segunda-feira, 16 de junho de 2014

Some Girls Are Bigger Than Others

A cerveja que eu tinha nas mãos não era a primeira daquele dia. No ambiente abafado do simpático Espaço Antena Zero, as seguidas Heinekens me eram entregues com eficiência pelo editor Marcelo Viegas numa tentativa de amenizar o calor, acentuado pelas luzes sob as quais eu estava sentado, ao lado da vitrine. Mais que o calor, o que me levava a beber então era o nervosismo da situação inédita: nunca havia lançado um livro antes e muito menos distribuído autógrafos. Naquele momento, eu aproveitava a breve folga entre as múltiplas canetadas tomando a cerveja e algum ar do lado de fora da loja. Perto de mim, um sujeito olhava com curiosidade o banner com uma enorme reprodução da capa de “Quem Vai Ficar Com Morrissey?”, vendo nela uma ilustração que bem podia ser o retrato de uma versão mais clara e mais jovem dele mesmo. Topete e costeletas, características comuns a muitos fãs de Moz – que inclusive eu carrego –, o sósia era, sem dúvida, um. Só depois, quando já tinha voltado aos autógrafos, descobri que ele era mais que isso. Com um livro nas mãos e a namorada ao lado, ele me abordou: a voz que se apresentava como Roberto costumava entoar as canções que salvam vidas numa banda cover dos Smiths no Rio de Janeiro. Bastante simpático, posou para fotos comigo, que achei graça na inusitada aparição do “próprio” Morrissey no evento. Não demorou para nos adicionarmos no Facebook e, a partir dele, mantermos contato.

Não falei para o Roberto, nem na ocasião nem depois, mas tenho uma opinião não muito favorável sobe bandas cover. Fico constrangido com a tentativa – na maioria das vezes, pateticamente frustrada – de reproduzir a aparência e o som da banda original. No caso do Roberto, que guarda uma considerável semelhança com Morrissey, até pelos cabelos grisalhos como os dele estão hoje, o visual estaria assegurado, mas tinha dúvidas quanto à performance. Será? A qualidade do áudio dos registros da banda que encontrei não me permitia julgar os méritos vocais do meu novo amigo, mas pude ver que ele se aplicava para imitar o gestual do cantor, com a sua conhecida dramaticidade. Por ir com a cara do Roberto, torcia para ser surpreendido. “Lord knows it would be the first time”. Os outros covers do autor deste verso a que assisti eram de doer. Um deles, cujo show eu vi na Fun House há anos e acabou se tornando uma passagem do livro, era impressionantemente parecido – mais até que o Roberto –, porém as semelhanças se limitavam ao físico: nem as letras o cara, que cantava num inglês macarrônico, sabia.   

Quando nos conhecemos, o Roberto me disse que, dali a um mês, viria para Santo André se apresentar com uma banda local numa festa cuja principal atração seria a discotecagem do ex-smith Andy Rourke. Mesmo tendo prometido comparecer, no dia, as cervejas que tomei num evento familiar e os quilômetros que me separavam da cidade do ABC me impediram de cumprir o combinado. Dois meses depois, porém, ele voltaria ao estado de São Paulo, dessa vez acompanhado da sua própria banda, para tocar na capital – na rua Augusta, a quatro estações de metrô da minha casa. Não hesitei em mais uma vez confirmar minha presença, imaginando que, agora, não teria problemas em dar as caras por lá. Só havia esquecido de um detalhe, o mesmo que esqueci quando me inscrevi para minha primeira meia-maratona, em agosto: a Copa do Mundo, amigo!  Da mesma forma que os jogos e o álcool que os acompanha vão comprometer meu treinos para a corrida, poderiam muito bem impossibilitar novamente minha ida ao show. Competindo com os Smiths cariocas, Uruguai x Costa Rica (16:00), Itália x Inglaterra (19:00) e Japão x Costa do Marfim (22:00). Já na metade do primeiro, me conformei: mais uma vez, daria um furo com meu novo amigo.

Passado o jogo do Japão, inúmeros chopes e doses de Jagermeister depois, imbuído do espírito do bêbado que honra a palavra empenhada na sobriedade, resolvi me abalar da Vila Madalena para a Augusta. O Zé Ricardo, amigo que assistia aos jogos comigo na Vila, me acompanhou na empreitada – um pouco a contragosto, mas acompanhou. O táxi nos deixou a algumas dezenas de metros do Inferno – nome do clube que receberia o show –, onde, como Morrissey nos lembra, há lugar para ele e seus amigos. Subindo a rua, os habitués mostraram que o “Baixo” que nomeia aquela região não é gratuito. Fomos interpelados e abraçados por um jovem travesti, que fazia questão de dizer que era mulher, e por uma prostituta gorda, igualmente jovem e diferentemente mulher de fato – pelo menos, me pareceu. O raciocínio desacelerado pelo álcool, só me dei conta de que pudesse se tratar de um assalto depois de algum tempo, quando então me afastei do abraço das “primas”. A gordinha se fez de ofendida e, para mostrar boa fé, apontou minha carteira caída no chão. Peguei-a e, depois de já ter abraçado o capeta, finalmente entramos no Inferno.

Depois de uma rápida passada no balcão para a infalível cerveja, me dirigi ao palco, onde a banda estava a toda. Cumprimentei o Roberto e voltei ao balcão, e lá estava o Zé de papo com uma meninota. De lá, ouvi a dedicatória do vocalista: “Esta música vai para o amigo Leandro Leal, escritor do excelente livro ‘Quem Vai Ficar Com Morrissey?’” (Não me pergunte a música. Seria exigir demais dos meus então combalidos neurônios.) Fiquei emocionado, óbvio. Ficaria ainda mais logo em seguida, quando uma turma de três amigos, ao perceber minha reação, vieram confirmar se eu era o Leandro. “Nossa, eu li o seu livro. Muito bom!” O rapaz elogiou demais o texto, a história, as referências e, como se tornou um costume, mostrou-se muito identificado com tudo. (Era a típica situação em que uma bebida me seria oferecida, mas não foi. Se bem que, com o bar já encerrado, nem se o cara quisesse poderia. E eu, bêbado como estava, definitivamente não precisava de mais nenhuma, embora não negasse, se me fosse oferecida. Educação é algo que levo a sério.) Pedi licença para o pessoal e voltei ao gargarejo, a fim de, finalmente, comprovar os predicados do Roberto Morrissey.

Então, estava eu, camisa da Seleção recém comprada, bermuda e cerveja na mão, diante de Morrissey. Trajes sem dúvida inadequados para se entrar na igreja – onde, tamanha a excelência da personificação do Roberto, eu parecia estar. Emocionado, acompanhei a belíssima execução de “I Know It’s Over” (de “The Queen Is Dead”, disco que hoje completa 28 anos e que escuto enquanto escrevo este texto). Em seguida, a banda mandou uma sequência de três canções da carreira solo do bardo: “Hairdresser On Fire”, “Everyday Is Like Sunday” e... putz, a terceira vou ficar devendo. Mais algumas músicas e, show acabado, eu tinha certeza: a tal “first time” tinha realmente acontecido. Que bela banda cover dos Smiths, meu amigo.

Colocar as minhas impressões quanto à apresentação na conta das cervejas – e do Jagermeister – ou mesmo na simpatia que nutro pelo Roberto seria injusto. Ele canta como quem sabe da importância daquelas palavras, daquelas melodias. Sabe que são canções que salvam vidas e se esforça para fazer jus a elas. Quando, depois da apresentação, estava no backstage conversando com ele e outros membros da banda, fiz questão de lhe dizer isso, com a ênfase e a repetitividade dos bêbados chatos. Ele, educado como sempre, em nenhum momento se mostrou incomodado pelo meu estado, apenas repetindo os elogios que já fizera ao meu livro. Nós nos identificamos como os fãs que somos, cada um fazendo uma homenagem à sua forma. 

Já era quase manhã quando, há muito sem sinal do Zé Ricardo, peguei o táxi a caminho de casa. Chegando em frente ao meu prédio, puxei a carteira para, com a nota de R$ 50,00 que havia sacado, pagar a corrida. Onde estava ela? Sinapses ainda em marcha lenta, levei um pouco para atinar: deveria estar entre os seios gordos da prostituta “gente boa” que me abraçara na Augusta – supondo que ela guardasse seus rendimentos nesse lugar-comum. Sem máquina de cartão de crédito, restou ao taxista me levar ao posto de gasolina mais próximo, onde abasteceu o carro com o valor equivalente à corrida, obviamente por minha conta.  

Paguei achando graça, sem lamentar o destino inusitado da minha nota de R$ 50,00. Que ficasse com aquela garota de programa, sem dúvida “bigger than others”. Minha noite já havia terminado e, grana perdida ou não, o saldo estava extremamente positivo.

PS: A segunda foto que ilustra este post me envelhece uns 20 anos, prova o quanto a bebida amassou minha cara. Mas é o registro mais fiel dessa aventura. Foda-se a vaidade.


quinta-feira, 5 de junho de 2014

Dias de Um Passado Lembrado

Por razões econômicas, meu pai levava meu irmão e eu para comprar gibis em bancas de revistas usadas. (Não confundir com sebos, estabelecimentos em geral voltados a colecionadores. Íamos a essas bancas porque éramos realmente duros.) Numa delas, nos deparamos com uma capa que chamou nossa atenção: trazia Wolverine, um herói que já conhecíamos, mas numa versão grisalha. Garras e dentes à mostra, ele defendia uma também envelhecida Kitty Pride, de expressão apavorada diante de uma ameaça que não víamos. Atrás dos dois, cobrindo quase todo o muro, um enorme cartaz de “procurados” trazia uma série de mutantes e, acima de alguns, uma tarja dizia quais já haviam sido presos ou eliminados. A tensão da cena dava a entender que, em breve, os dois x-men podiam engrossar esse número. Compramos o gibi na hora.

Eu e o Rogério já havíamos lido outras histórias dos alunos do Professor Xavier – nas quais já tínhamos visto os personagens daquela capa –, mas nenhuma havia mexido com a gente como aquela, ambientada num futuro sombrio. Era parte da saga “Dias de Um Futuro Esquecido”, que mal podíamos esperar para saber como continuaria – e, também, como havia começado. Apesar do gibi ser usado, a edição era recente, do mês anterior, e não tivemos muita dificuldade em encontrar os números anteriores nem em, depois, continuar acompanhando. O capítulo seguinte estava na última Superaventuras Marvel. Recém-publicada, exigiria dos nossos pais uns cruzados extras, mas valia o sacrifício – deles, claro.

Chris Claremont e John Byrne, respectivamente roteirista e desenhista, dividem os créditos desta série e de outra, tão marcante quanto: “A Saga da Fênix Negra”, que, embora anterior, lemos apenas depois, também em gibis de segunda mão. Os dois arcos de histórias contêm algumas das cenas mais icônicas e chocantes já mostradas nos quadrinhos até então – e até hoje. Em “...Futuro Esquecido”, testemunhamos Wolverine ser reduzido ao indestrutível esqueleto de adamantium por um sentinela. Em “...Fênix Negra”, nos comovemos com o choro de Ciclope segurando a falecida Jean Grey nos braços. A excelência comum equivale as duas epopeias, até entrar em ação o critério de desempate, que para mim é o emocional, sempre. Aí, você já sabe qual ganha.

Em 1986, quando compramos aquela Superaventuas Marvel, ao mesmo tempo em que sonhávamos com um filme dos X-men, eu e o Rogério logo nos dávamos conta de que seria impossível. A gente sabia que os efeitos especiais jamais seriam capazes de reproduzir, por exemplo, a pele de aço orgânico do Colossus. Nossa descrença cinematográfica se estendia às também metálicas garras do Wolverine, aos raios do Ciclope, aos poderes da Fênix... Pragmáticos como apenas crianças pobres que nunca acreditaram em Papai Noel sabem ser, estávamos certos de que não viveríamos para ver nossos queridos mutantes no cinema. O futuro viria a confirmar que realmente Papai Noel nunca existiu, mas nos reservava coisa muito melhor que um velho gordo puxado por renas voadoras.

E tudo bem se já éramos adultos quando a trilogia dos X-men foi às telas: para provar que nunca deveríamos ter duvidado do seu poder, o cinema nos levaria novamente à infância com as fitas dos discípulos do Professor X. Aqueles filmes superavam tudo o que julgávamos impossível nos anos 1980. Os efeitos eram incríveis, como já se tornara default entre as mega produções, mas o que surpreendia mesmo eram os roteiros – embora criticados pelos puristas de sempre, foram muito bem sucedidos em transportar para as telas a alma dos mutantes, com seus conflitos (internos e externos) e sua busca por coexistência, aceitação – e, no caso de Magneto & Cia, supremacia. Embora Wolverine tivesse passado de baixinho truculento a galã, a essência dos personagens também estava lá – até a do próprio. O crescimento do herói não foi apenas em centímetros: como já havia acontecido nos quadrinhos, Logan rapidamente assumiu o protagonismo da série. Cresceu tanto que, além de ganhar seus próprios filmes, acabou roubando o papel que originalmente cabia a Kitty Pride em “Dias de Um Futuro Esquecido”. No último filme dos X-men, é Wolverine, não ela, quem volta ao passado para tentar impedir a criação dos sentinelas e o consequente extermínio dos mutantes.

O que também cresceu muito com a sequência de filmes mutantes foram minhas expectativas quanto à filmagem da minha saga favorita. Os anteriores tinham sido sensacionais, mas este tinha que ser mais que isso. Na manhã do sábado passado, estava em frente ao cinema do Shopping Paulista esperando sua abertura, para assistir ao filme já na primeira sessão. Saí dela entusiasmado e disse para quem encontrei: é o melhor filme de super-heróis já feito. Agora, quase uma semana depois, o entusiasmo se mantém: sim, amigos, é o melhor filme de super-heróis já feito. “Dias de Um Futuro Esquecido” traz o que a primeira trilogia tem de melhor (inclusive o diretor Brian Singer) combinado aos elementos de “Primeira Classe”, o ponto mais alto da cinematografia dos X-men até então. Foram feitas dezenas de alterações em relação aos quadrinhos, evidentemente, mas todas benéficas e plausíveis. Puristas, novamente, devem ter reclamado, mas do que eles não reclamam? Aliás, por que eles ainda se dão ao trabalho de assistir às versões cinematográficas?

O pequeno Leandro certamente teria gostado, e muito. Só acharia injusto não ver nos créditos os nomes dos ídolos Chris Claremont e John Byrne.