quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Foto Visconde



As vitrines do Foto Visconde, pequeno comércio localizado no meu bairro, estão repletas de produtos de gosto e qualidade duvidosa, tipo almofadas e caixinhas de música em formato de coração vindas do Paraguai -- nunca soube que se importavam almofadas bregas de lá, mas, vagabundas como aquelas, só podem ter sido. Entretanto, como sugere o nome, no Foto Visconde também há artigos para fotografia, perfeitos para o caso de você ser o último proprietário de uma câmera analógica e de não se importar em comprar filmes com a validade vencida. (Sim, porque, com a procura restrita a uma pessoa, essa que ainda não tem uma digital, duvido que tenham renovado o estoque ultimamente.) A loja também não prima pela simpatia, nem pela beleza das atendentes: no balcão, revezam-se a proprietária, uma senhora japonesa de poucos sorrisos e palavras, e uma moça cujo gosto pelas mini-blusas rivaliza com a barriga peluda. Enfim, o Foto Visconde é o tipo de lugar onde eu nunca entraria. Mas acabei de voltar de lá, e não foi a primeira vez lá.

Não sou chegado a almofadas em formato de coração, não tenho máquina analógica (se tivesse, talvez preferisse comprar filmes que prestassem) e, definitivamente, as balconistas do Visconde não fazem meu gênero. Fui à (não muito) simpática loja tirar umas 3x4 quase instantâneas: se não são reveladas à moda antiga, são tiradas numa máquina estilo Polaróide, à moda um pouco menos antiga, ficando prontas em dez minutos -- cinco, segundo a japa, mas na verdade dez. Ao chegar em casa, percebi que dois da meia dúzia de retratos estavam péssimos, porém não tive coragem de reclamar. E olha que os oito reais pagos não foram necessariamente uma pechincha. Então, por que cacete eu fui lá? Após três meses em Portugal, hoje faz uma semana que voltei ao país. Este retorno tem muito a ver com a minha ida à Foto Visconde. (Até porque, que eu saiba, essa pérola da cafonice e da obsolescência não tem filiais, quanto mais no Além-Mar.)

Alguém me disse ter lido não sei onde que Lisboa fora avaliada uma das três capitais mais seguras da Europa, continente que, por si só, já é bastante mais seguro que o nosso. Não estive em todas as capitais europeias, e não tive qualquer problema nas outras por que passei, mas assino em baixo do que disse a revista não sei qual. Frequentador contumaz das noites lisboetas, muitas vezes sozinho, algumas delas bêbado, vaguei a pé por lugares desertos de madrugada, sem ser importunado por ninguém. Diante disso, e do destaque dado a pequenos crimes pelo noticiário local, achava graça quando taxistas se queixavam do crescimento da violência. "O senhor precisa conhecer o meu país", eu emendava, mostrando o Super-Trunfo e acabando com o papo. Santa boca.

Na última noite de sábado, dava carona para uma amiga até sua casa, quando paramos num semáforo. Talvez pensando ainda estar em Lisboa, levei um segundo até decodificar os dois sujeitos gritando e nos apontando armas. Talvez por não perceber de cara que se tratava de um assalto, não me assustei e saí do carro calmamente. E lá se foram eles, levando o surrado Fiesta e meus recém-comprados Ray-ban (substituía outro perdido em Lisboa) e iPod (cheio de música bacana, difícil de repor), além da carteira, com pouco dinheiro mas muitos documentos. Minha amiga também teve um belo prejuízo, mas concordamos que, diante da possibilidade de sermos vítimas de um sequestro relâmpago ou mesmo de levarmos um tiro, até que não foi tanto. Depois de uma longa madrugada de delegacia e ligações para cancelar cartões de crédito e telefone celular, dormia o sono dos assaltados quando recebi uma ligação da polícia: diziam ter encontrado meu carro numa favela da Zona Sul de São Paulo.

Imaginei encontrar o possante depenado. Segundo o que ouvi, se os bandidos não o tivessem feito, a polícia daria conta do recado. Dizem que costumam passar a mão em estepes, rodas, e no que mais os ladrões tiverem deixado. Por isso, fiquei surpreso ao chegar e ver meu Fiesta intacto, a não ser, obviamente, pelo aparelho de som. Tinha até uns trinta reais que caíram embaixo do banco e os "meliantes" não acharam. Mais impressionante que isso, foi o fato da própria polícia não ter embolsado a grana. Tudo bem, não é nenhuma fortuna, mas o que os impediria de dizer não terem visto as notas? E mais: levando em conta o que ganha um policial, 30 mangos, ainda que pouco, são um adianto. Foi nisso que pensei ao agradecer ao policial responsável pela localização, camarada de maneiras humildes e honestas, contrastando com a imagem que toda a população, tirando a mãe dele, tem dos policiais. Devido a essa postura, pensei até em dar o dinheiro para ele, mas lembrei que era o único que tinha. Se os PMs ganham pouco, eu, atualmente, ganho menos.

Essa desventura urbana me remeteu a uma das primeiras conversas que tive com brasileiros radicados em Lisboa. Diziam ser impossível viver num lugar tão violento, que Deus os livrasse criar seus filhos aqui, e deram a entender que jamais voltariam. Mais exaltada, uma moça quase espumava ao manifestar sua ira em relação aos políticos, ao povo e a todo o status quo do Brasil. Eu, recém-chegado e um pouco assustado, me limitei a expor um ponto de vista meio clichê, mas em que acredito: por mais defeitos que haja por aqui, cabe a nós ficar e ajudar a consertar o país. Completei: quem optar por sair de lá (aqui) não tem direito a reclamar -- se bem que, comparando aos direitos de que somos tolhidos diariamente pela criminalidade, isso não é nada. Àquela altura, pretendia morar em Portugal mais tempo do que acabei morando, mas nunca pensei ficar em definitivo. Sem querer soar patriota-babaca, gosto do meu país e, apesar de todos os pesares, sei que ele também gosta de mim. Só não precisava ter me mandado aquele comitê de boas-vindas. Achei exagero. Uma faixa de "bem-vindo" estava de bom de tamanho.

Foi a essa calorosa recepção que deveu-se minha ida ao pitoresco Foto Visconde. Fui tirar umas 3x4 para as segundas vias dos documentos roubados com a minha carteira. E por que fui a um lugar onde as fotos, além de mais caras, tem péssima qualidade? Bom, para começar, porque tiro foto lá desde sempre, por isso nem pensei em ir a outro lugar. Mas, quando estava lá, me pareceu estar diante de uma bela duma metáfora (não, eles não vendem isso por lá). Achei que, assim como o Brasil, o Foto Visconde merecia uma segunda chance (ou seria a centésima?). Se ninguém acreditar que o país tem jeito -- e atitudes como a do PM que me devolveu os 30 paus mostram que tem -- ele vai acabar por não ter mesmo. Da mesma forma, se ninguém for ao Foto Visconde, eles vão terminar fechando. Se bem que, no fim das contas, isso talvez não fosse tão mal.

(Texto escrito segunda-feira, 22 de outubro)

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Sabe mais que um miúdo de Pindamonhangaba?


Muita gente acha que dia 12 de outubro é feriado porque nessa data se comemora o Dia das Crianças. Por muita gente, entenda-se as crianças, que apesar da diminuição dos índices de natalidade, ainda são "muita gente" -- isso, claro, se você considera criança gente. Entre elas, poucas sabem quem é Nossa Senhora Aparecida. Dessas, um pequeno percentual tem uma vaga idéia de que ela tem algo a ver com Papai do Céu (vulgo Jesus). Quase nenhuma sabe que se trata da padroeira do Brasil; as que sabem nem desconfiam o que seja uma padroeira. E mesmo que soubessem, não achariam que ela é importante a ponto de ter um feriado só para ela -- o cara que chutou uma imagem da santa deve pensar o mesmo.

Criança é assim: não sabe nada a respeito de coisa alguma e, por isso, fica fazendo conjecturas (palavra que, obviamente, não faz parte do vocabulário delas) sobre tudo, tipo a história das nuvens serem de algodão. Se você acha isso absurdo, lembre-se que o mundo já foi tido como uma tábua a repousar nas costas de uma tartaruga, teoria que deve ter partido dum moleque metido a sabichão, levado a sério pelos "sábios" gregos. Em tempos em que ninguém sabia de porra nenhuma, quando se buscavam explicações para a vida, o universo e tudo o mais, as baboseiras infantis faziam sucesso. Deve ter sido aí, percebendo uma oportunidade de mercado, que Sócrates incentivou seus discípulos a se aproximarem do pensamento infantil. O problema foi que a proximidade com as crianças não parou por aí, e o xará do Doutor teve que apelar para a cicuta.

Hoje em dia, ninguém mais anda de toga pela rua -- se andar, vai logo preso por atentado ao pudor --, e qualquer idiota sabe que a terra é redonda, apesar de não imaginar que é achatada nos pólos. Ainda assim, como na Grécia Antiga, a ignorância infantil continua a ser celebrada. Por aqui, o velho Raul Gil consegue pontos no IBOPE à custa de garotinhas incapazes de pronunciar "Pindamonhangaba" -- número repetido toda semana, que, inacreditavelmente, ainda faz sucesso. Já em Portugal, a chatice é mais sofisticada. Como sugere o nome, o quiz show "Sabe Mais Que Um Miúdo de 10 Anos?" testa os conhecimentos de participantes adultos comparando-os a crianças do primário. A disputa, que deveria ser moleza para o marmanjo, me surpreendeu. Quando vi o programa (por poucos minutos, era chato demais), a "turminha" humilhou o coitado, distribuindo sorrisos e piscadelas ao auditório entre uma resposta certa e outra.

Bem feito para o perdedor. Quem mandou manter viva a criança interior? Os moleques que ganharam certamente já mataram e jogaram as suas no rio. A polícia nunca vai desconfiar daqueles rostinhos angelicais.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Genéricos

Um vazio tomou-lhe o peito e um pouco mais abaixo. Cansado de sentir-se oco, resolveu preencher pelo menos a ausência mais banal. Com sorte, tapeando o estômago, conseguiria também enganar o vizinho do andar de cima.

Pouco depois, estava no supermercado a escolher entre duas marcas de sorvete, ambas desconhecidas, como a maioria dos produtos da loja, popular. Se nas roupas e nos calçados mal dava atenção às etiquetas, a coisa mudava quando o assunto era comida: aí, se fosse para levar algo de qualidade duvidosa, preferia não comprar. Fiel a esse princípio, ia deixando o sorvete para trás, quando ouviu do bucho o aviso para voltar. A necessidade de glicose juntava-se à falta de dinheiro para sobrepujar o preconceito. Seis sorvetes ao preço de dois de uma marca famosa fizeram a frescura beijar a lona logo no primeiro assalto. Não esperou chegar em casa para provar o primeiro, que, sem a embalagem de design medonho, até tinha uma cara boa. E, olha só, o gosto também não era mau.

Enganado o estômago, não seria tão fácil com o coração. Pô, sorvete genérico? Se fossem umas covinhas no canto da boca, uma orelhinhas pequeninhas, bem desenhadas. Mas essas coisas, explicou ao músculo, não se vendem num supermercado, ainda mais num popular. A resposta foi uma ordem para ligar para ela. Já que ouvira a barriga, sentiu-se forçado a atender também a esse pedido. Depois, com o resultado da chamada longe do esperado, conveceu o coração a dar uma segunda chance para o picolé.

O chocolate camuflou o amargo que povoava sua boca, e isso o fez se sentir mal, um trapaceiro. Para além das metáforas baratas, o gosto ruim que faz-se sentir nas desilusões está previsto no regulamento das relações amorosas. Como um atleta usuário de esteróides, temia o antidoping e a conseqüente suspensão das competições por tempo indeterminado. As mulheres sempre afogam suas mágoas com quilos de chocolate, ele sabia, mas também sabia que, para elas, as regras são um pouco diferentes.

Queria reaver o asco, a vontade de vomitar e, para isso, correu ao bar da esquina. Pediu o que houvesse de mais forte e mais barato. Seu estômago reclamaria, sem dúvida, mas sabia que, como nas roupas e nos sapatos, nas bebidas, ele também não dava atenção para as marcas.